segunda-feira, 31 de agosto de 2009

quando a inspiracao nao me guia as maos...

Passagem da Noite

E' noite. Sinto que e' noite
nao porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desanimo
Sinto que nos somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que e' noite no vento,
noite nas aguas, na pedra.
E que adianta uma lampada?
E que adianta uma voz?
E' noite no meu amigo.
E' noite no submarino.
E' noite na roca grande.
E' noite, nao e' morte, e' noite
de sono espesso e sem praia.
Nao e' dor, nem paz, e' noite,
e' perfeitamente a noite.

Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompoe.
Que gozo na bicicleta!

Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pao.
Amar: mesmo nas cancoes.
De novo andar: as distancias,
as cores, posse das ruas.
Tudo o que a noite perdemor
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fieis!
Saber que ainda ha florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
nao murchou; nao nos diluimos.
Chupar o gosto do dia!
Clara manha, obrigado,
o essencial e' viver!

Carlos Drummond de Andrade

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