deve haver um porquê, um motivo pra se acordar um dia se sentindo sem lugar no mundo. deve haver um porquê pra alguém que é confortável consigo próprio uma dia acordar e não se sentir bem dentro da própria pele. deve existir uma função pra trizteza, pra melancolia, pra dor de dentro, pra o que não se diz com palavras. deve haver um porquê de, em algum momento, parecer que você é invisível, que os outros olham e não te enxergam e parecem passar por cima de você como se você fosse só mais um pedra do calçamento.
hoje foi um dia que não combinou com o sol brilhando num céu azul de brigadeiro. devia estar chovendo, eu pensei ao acordar. queria um dia cinza, queria nuvens de chumbo no céu, porque aí, sim, o céu combinaria com o que tenho por dentro. pesaríamos eu e elas, as nuvens, e talvez eu sentisse como se alguma coisa nesse lugar combina comigo, como se eu estivesse no lugar certo. eu queria hoje fosse só o primeiro dia de uma primavera ao avesso, queria que tudo virasse botão e fosse involuindo até se dissolver e não haver mais nada. toda matéria desaparecida em poucos segundos. e pra sempre: o nada.
fiz planos que não deram certo, olhei pra uns com olhos de súplica. mas nada adiantou hoje, nada funcionou, a comida não teve gosto, o chocolate não trouxe alento, o banho não refrescou, o perfume não tinha cheiro. no prédio da frente, crianças brincavam e o barulho que elas faziam, normalmente agradável, parecia ensurdecer, machucar, chegar nas entranhas rasgando, latejando. talvez dormir seja a única solução, pra desaparecer entre muitos lençóis e acordar daqui a uns dois anos, quando tudo tenha se transformado.
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