segunda-feira, 20 de setembro de 2010

ELA

quando éramos crianças, ela cuidava. fazia a comida preferida, cuidava do banho, da diversão no cine são luiz, com direito a duas sessões. levava o magote todinho pra serra, sustentava nossa gula pelos picolés do frescão. levava presentes nas visitas as salvador. nos mandava ir brincar no mato pra ele dormir depois do almoço, protegendo assim uns e outro.
pensei em tudo isso sábado de manhã. a ressaca da sexta-feira só começava quando o telefone tocou e pediu minha presença. ao chegar lá, ela meio agitada, vi o filme todinho de novo, de como ela construiu pra si, sem qualquer premeditação, um mundo de amor, carinho e suporte eternos. apesar da dor de cabeça e do gosto de cabo de guarda-chuva na boca, não pensei nem meia vez em correr pra lá. e conversa vai, conversa vem, com cuidado e paciência, descobrir porque ela não queria a companhia da mocinha que vem dar uma força no fim-de-semana, porque ela não tinha dinheiro, porque estava daquele jeito meio agitada. é a minha forma de lhe dizer que estou ali. e, apesar de parecer que os 91 anos de vida lhe fizeram um tanto esquecida, confusa, ela entende direitinho. e me liga pedindo ajuda, me pede pra ir visitar quem ela quer bem, ir ao banco.
ela vive a dizer que não sabe o que fez pra ter uma família tão unida, doze netos que se querem tanto bem. mas a gente sabe direitinho o que ela fez: ela liderou pelo exemplo. foram ela e ele que nos estenderam a mão a vida toda quando qualquer coisa acontecia, estiveram sempre por perto.
foram amor e exemplo que construíram essa família. simples assim.

sábado, 11 de setembro de 2010

nunca

você não está só se três crianças te chamam de tia e te querem bem de verdade. se ficam com você quando os pais viajam e curtem estar só contigo. se te querem no abraço antes de dormir, se te deixam lhes ajeitar o lençol no meio da noite, se chamam teu nome na hora do pesadelo, do dever de casa, de colocar pasta na escova de dente, de contar o acontecimento mais legal da manhã na escola. se elas correm quando você chega pra buscá-las na escola e dão abraços e beijos, perguntando, com a maior naturalidade do mundo, o que é que tem para o almoço.
você não está nunca só quando um sábado à noite, despretensioso, se torna um encontro. a conversa é sem qualquer pretensão, porque todos ao redor da mesa sabem que é nas coisas mais despretensiosas que está o que é de verdade nessa vida. o encontro não precisa ser marcado com antecedência, pode surgir de um fato inesperado, de um acontecimento triste, de uma coincidência da vida. não importa o que fez o encontro possível, importa só que ele exista.
você não está só se tem família. se um simples e-mail desencadeia uma reação e faz com que mãos se estendam. se existe a possibilidade de pedir ajuda, mesmo que eles estejam impossibilitados de te ajudar. não é isso que importa - o que importa é poder pedir, poder gritar.
e saber que não caminha só nesse mundo. basta isso.
eu não estou nunca só.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

pressa

aos poucos, eu me afino com ela: a cidade se debruça sobre mim, com força e dureza de concreto. depois de alguns anos na maciez das zonas rurais, encontrar-me com a dureza da cidade, que se pretende metrópole, é quase violento. mas fomos nos tateando uma à outra, com cuidado, sutileza, sem qualquer pressa. eu ainda prefiro o ritmo lento das zonas rurais, não vejo qualquer glamour numa estrutura em que ninguém é de fato alguém. aqui, somos todos só uma multidão - não há rosto, identidade, só a massa.
me incomoda a pressa daqueles que fazem a cidade, carros cortando uns aos outros, costurando nas ruas da cidade um zig-zag eterno de desespero. na frente de uma escola, às sete da madrugada, uma mulher que acabava de deixar seu filho na escola não pode esperar que outra, com quatro crianças a tiracolo, atravesse a rua. faz menção de passar por cima e, enquanto as crianças arrastam suas mochilas de uma calçada à outra, continua a avançar, milímetro por milímetro, como numa ameaça.
eu tive vontade de lhe parar o carro, pedir-lhe que abaixasse o vidro: como é seu nome? pra onde você vai? o que te desespera tanto? tive vontade de lhe dizer que de nada adianta correr, que a vida é maior que ela, que aquele carro bonitão que ela dirigia, que a reunião pra qual ela teme se atrasar, que a aula que a criança dela vai assistir. que a pressa dela não a leva a lugar algum, tive vontade de dizer-lhe.
reajo à pressa eterna da cidade com resistência. sou adepta da lentidão, da paciência, espero que os ônibus peguem seus passageiros nos pontos da cidade, espero que carros saiam dos estacionamentos, deixo que pedestres atravessem a rua. escuto resignada as businas atrás de mim, elas não resgitram no meu cérebro o recado da pressa.
entre as opções da cidade que corre o tempo todo, eu ainda fico com a possibilidade de olhar com calma. só quem olha - e olhar requer tempo e calma - é capaz de ler a cidade e todas as suas entrelinhas. e achar, no meio de tantas palavras mal escritas, alguma rima, um esboço qualquer de poesia.

sábado, 21 de agosto de 2010

sobre

azedar o caldo e o dia dos outros é fácil. falar o que quer, na hora que quer, do jeito que quer é fácil. difícil é se responsabilizar sobre o que foi feito e dito.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

20 de agosto de 1982

sexta-feira já foi pra mim o dia que antecedia os dois dias da semana sem escola. já foi dia internacional da cerveja, nos tempos da faculdade, no lanches lu, pertinho da linha do trem, entre duas montanhas das gerais. já foi dia de colocar as penas pra cima, cansada do dia de aula, do laboratório com uma das minhas turmas preferidas da minha vida de educadora.
exatamente hoje, sexta-feira, essa sexta-feira 20 foi dia de saudade:
um menino dos cabelos amarelos, de bochechas salientes, de um eterno riso fácil. de abraços e chamegos, de um amor maior que o mundo. meu primeiro neném, minhas primeiras fraldas de verdade, um algodãozinho na testa quando tinha soluço. o menino por quem eu um dia fui bater boca com outro no fliperama perto do colégio. o menino que ficou na escola sozinho um dia, o pai se atrasou por qualquer problema no trabalho. e eu fui lá, salvá-lo daquele pátio já escuro, com direito a pito no pai, sem nem antes saber o que havia acontecido. meu menino e o bilhete que ainda tenho, de quando eu fui fazer faculdade e nós, pela primeira vez, ficamos separados no espaço.
perduram nele hoje o sorriso fácil, o jeito mole de falar de filho caçula. perduram em mim as lembranças doces da casa da rua das dálias e o amor maior que o mundo. esse, o amor, há de perdurar sempre, maior que o mundo, profundo e até sofrido. mesmo que entre nós haja kilômetros e tempo. mesmo assim, mesmo que qualquer coisa aconteça, eu tenho certeza do amor que cresceu junto com o menino de cabelos amarelos que se transformou no homem de cabelos castanhos que continua a ser, antes de tudo, meu menino de cabelos amarelos e riso fácil.

toró

bendito seja o youtube numa noite solitária de sexta-feira:

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

fortaleza

o nome dela remete a força, proteção. ela deveria ser, então, onde nos sentimos seguros.
nos reencontramos eu e ela já fazem uns dias. eu a vi da janela do avião, a me apresentar seu cartão postal: um mar azulverdeturquesa, o litoral recortado por rios, ruas quadradinhas, uma beleza.
de perto, ela não é bela, apesar do slogan desastroso. de perto, ela me parece pequena. não em números, esses parecem quase todos tender ao superlativo. de perto, ela é pequena em expressão. são buracos, engarrafamentos, falta de educação e de respeito, crimes, liberdades tolhidas, desejos reprimidos, oportunidades escassas e tantas mil outras coisas que não permitem que ela se engrandeça, que os seus se engradeçam junto. formamos, nós e ela, um amontoado que se apequena todo dia, um pouco de cada vez, sem que ninguém perceba. um amontoado que se engasga toda vez que quer se expressar, que quer projetar sua voz pra frente, que quer ser diferente de alguma forma.
todos nós somos: o menino que pede dinheiro na porta da padaria, o velho que está sempre no sinal da oswaldo cruz com antonio sales a sacudir moedinhas na mão em busca de mais, os jovens que cuidam dos carros estacionados, a moça que nos fita de dentro do ônibus apinhado de gente. de nada adianta você estar em seu carro, de ar condicionado ligado, falando ao celular ou ouvindo no rádio um clássico da música popular brasileira. você continua sendo todos aqueles que ela, a fortaleza, exclui.